Por Marcelo Soares*
Referências:
*Marcelo Sares é sociólogo e um dos fundadores da RAiZ – Movimento Cidadanista
Postado também no site da RAiZ - Movimento Cidadanista, no dia 13/03/2017.
“Acho que devíamos devolver este país para os índios”.
Quem nunca viu ou ouviu esta frase,
principalmente em momentos de crise como agora, em que não vemos
alternativas ou projetos de país e tanto as elites como as esquerdas
transformaram o Brasil em um imenso vazio de significados.
Pior que a grande maioria das pessoas
que faz este desabafo não tem um compromisso real com a defesa dos povos
indígenas e muitas vezes é cúmplice do genocídio sofrido por eles ao
longo dos mais de 500 anos da nossa história.
Mas o que parece uma solução mágica e
irrealizável pode originar uma reflexão sobre a origem desta crise
econômica, política e mesmo civilizatória em que estamos metidos. E esta
origem tem nome: é o capitalismo com suas contradições e ciclos, com
sua lógica do lucro custe o que custar, mesmo que esse custo seja nossa
própria sobrevivência enquanto espécie.
E nos últimos anos tem crescido no campo
das esquerdas o debate sobre o bem viver, o sumak kawsay em kichwa, ou
teko porã em guarani, como uma possibilidade de construção de outro tipo
de sociedade, sustentada em uma convivência harmoniosa entre os seres
humanos e destes com a natureza.
A partir da luta dos povos bolivianos e
equatorianos, que se consagrou nas novas constituições destes dois
países, o bem viver deixou de ser uma solução utópica e um modo de vida
característico de comunidades indígenas, tidas como selvagens em
contraposição ao nosso modo de vida civilizado, para se constituir em
uma alternativa para a desconstrução da matriz colonial que esteve na
base da organização econômica inclusive dos governos progressistas das
últimas duas décadas na América Latina, com a ênfase no extrativismo que
ameaça justamente os povos indígenas e as suas terras.
O próprio presidente do Equador, Rafael
Correa, em um debate sobre a Lei da Mineração daquele pais, afirmou: “A
mineração é fundamental para a era moderna. Sem ela, regressamos à época
das cavernas. Não podemos cair na irresponsabilidade de ser mendigos
sentados sobre um saco de ouro.” (1)
Esta declaração reflete uma concepção de
desenvolvimento que esteve na base da grande maioria dos governos de
esquerda e mesmo socialistas, a qual prioriza o desenvolvimento das
forças produtivas como geradora de bem estar social, mesmo que este
desenvolvimento se reflita em uma ação predatória sobre a natureza e
sobre comunidades e povos não integrados à este modelo.
O ecossocialismo que pautou a crítica
não apenas ao capitalismo, como ao próprio socialismo não ecológico e à
sua lógica também predatória da natureza, sempre foi relegado à um
segundo plano dentro das organizações de esquerda, justamente pelo
fetiche do desenvolvimentismo e a visão de Estado e economia que as
caracteriza.
Michael Lowy, um dos maiores
formuladores do ecossocialismo, foi bem claro sobre a necessidade de
repensarmos o próprio modelo socialista, a partir do que o sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos denominou de epistemologias do
sul: “As economias dos países do Sul, da Ásia, África e América latina
devem se desenvolver, mas isto não significa copiar o modelo de
desenvolvimento capitalista do ocidente e seu padrão de consumo
insustentável. Trata-se de buscar um outro modelo, um desenvolvimento
ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas
cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias
alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades
sociais da grande maioria. O modelo ocidental não só é absurdo e
irracional, mas não é generalizável: se os chineses quisessem imitar o
american way of life, cinco planetas seriam necessários.” (2)
E é o próprio Löwy quem avança nesta
relação entre ecossocialismo e bem viver como princípios para um outro
mundo possível, ao citar uma afirmação do histórico líder indígena
peruano Hugo Blanco de que “os indígenas já praticam o ecossocialismo há
séculos”.
E esse ecossocialismo dos indígenas nada
mais é do que o bem viver, que tem como principais características
justamente a harmonia com a natureza, reciprocidade, relacionalidade,
complementaridade e solidariedade entre indivíduos e comunidades,
oposição ao conceito de acumulação perpétua e regresso a valores de uso.
O bem viver envolve, pois, uma reflexão
necessária sobre nossas visões de Estado e economia, ao defender a
construção de um Estado plurinacional, comunitário e autonômico, tal
como proposto nas recentes constituições equatoriana e boliviana, mas
também se contrapor à visão de desenvolvimento e introduzir um debate
que tem sido feito também na Europa sobre o decrescimento econômico.
Segundo Alberto Acosta: “A proposta de
um novo estado deve incorporar dois elementos-chave: o Bem Viver e os
Direitos da Natureza, a partir dos quais devem se consolidar e ampliar
os direitos coletivos ou comunitários. Não há contradição com a
participação cidadã, pois não se trata de uma democracia que abra as
portas unicamente à cidadania individual-liberal: há também cidadanias
coletivas e comunitárias. Além disso, os Direitos da natureza necessitam
e, ao mesmo tempo, dão origem a outro tipo de cidadania, que se
constrói no contexto ambiental.” (3)
Mas o bem viver também envolve outra
visão de economia, sustentada em princípios como a solidariedade,
sustentabilidade, reciprocidade, complementariedade, responsabilidade,
integralidade e autossuficiência. Isso significa uma economia não
baseada no produtivismo e consumismo exacerbados pelo capitalismo, cujo
limite será a nossa sobrevivência como espécie.
A partir destas reflexões que envolvem
não apenas a necessidade de transformação da nossa forma de produzir e
consumir, mas principalmente da forma como nos relacionamos entre nós e
com a Natureza como um todo, vemos com bons olhos o despertar de setores
das nossas esquerdas para a afirmação do ecossocialismo e do bem viver
como princípios para aquele outro mundo possível que tanto debatíamos
nos Fóruns Sociais Mundiais.
E ficamos ainda mais otimistas ao vermos
a crescente aproximação destes setores com os povos indígenas e suas
lutas aqui no Brasil, cabendo destacar a experiência dos ecossocialistas
do PSOL do grupo Ceará no Clima e do grupo que integro aqui no Rio
Grande do Sul, da RAiZ – Movimento Cidadanista, um partido movimento em
construção justamente com base nos princípios do ubuntu, bem viver e
ecossocialismo.
Isso significa que entendemos que não se
trata de entregar o Brasil para os índios, como uma experiência mágica
ou uma tábua de salvação para as nossas muitas crises, mas de
aprendermos e construirmos junto com os povos indígenas um novo projeto
de país, democrático e generoso para com nossa gente.
- Acosta, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária. Elefante, 2016. Pg. 112
- Löwy, Michael. Entrevista ao site do Instituto Humanitas da UNISINOS. 2011.
- Acosta, Alberto. Ibid. pg. 157.
*Marcelo Sares é sociólogo e um dos fundadores da RAiZ – Movimento Cidadanista
Postado também no site da RAiZ - Movimento Cidadanista, no dia 13/03/2017.
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