Saramago já nos advertia que estamos cegos da razão. Talvez seja o
nosso ego, sempre inflado e se achando o dono do pedaço. Talvez seja
pela nossa incessante incapacidade para amar. Podemos dizer que essa
cegueira se alastra em função da facilidade. É sempre mais fácil andar
sem olhar para o lado. Sem olhar para nós mesmos. Sem olhar para o que
somos ou nós tornamos.
Cegos que somos, seguimos a doutrina da sociedade de consumo.
Condicionados como bons soldados, não recusamos a missão de esvaziar um
Shopping Center. Aprendemos desde cedo, que como partes do todo, devemos
manter a ordem e, assim, não devemos transgredir as leis de ouro que
tornam a sociedade contemporânea um reino de “felicidade”.
O sistema hegemônico, através da mídia, não nos deixa esquecer a
importância de manter o sistema funcionando harmonicamente, e de como
bom senhor, lhes devemos obediência e servidão. Servidão esta,
construída por meio de chicotes ou força física? Não. Ora, se somos
seres desejantes, então, nada melhor do que usar a mídia para nos
seduzir.
Somos seduzidos pela promessa de felicidade escondida atrás do
consumismo. Somos tentados por todos os sorrisos espalhados nas
propagandas. Somos condicionados a acreditar que a felicidade só é
possível se e, se somente se, tenho condições de participar da orgia do
consumo.
Sendo assim, somos ludibriados por um sistema que nos entorpece e nos
torna míopes que só enxergam a realidade pelos óculos que lhes são
oferecidos. Tornamos-nos, dessa forma, servos voluntários do sistema,
pois embora livres, nos permitimos condicionar e obedecê-lo. Sem espaço
para a crítica ou auto-reflexão, somos apenas reprodutores de uma
cultura aprisionadora que qualifica como tolice qualquer prazer fora do
consumo.
“Imaginem que tolice, permitir que as pessoas se dedicassem a
jogos complicados que não contribuíam em nada para o consumo.
Atualmente, os Administradores não aprovam nenhum jogo novo, salvo se,
se demonstrar que ele necessita, pelo menos, de tantos acessórios quanto
o mais complicado dos jogos existentes.”
A felicidade, portanto, deve ser comprada, aliás, somente existe se
for comprada. Não há espaço para as coisas simples, para o que é
“gratuito”, para que possamos ser felizes e ter prazer, precisamos
inexoravelmente consumir.
Essa é a servidão voluntária através do consumo, não pela violência
ou coerção, mas pela sedução e erotismo produzido nas relações de
consumo.
Devidamente seduzidos pelo mercado, não conseguimos sair das suas
entranhas. Não precisamos. Tudo é mercadoria. Ouvimos o tempo inteiro a
voz do mercado, com seus alto-falantes que denunciam qualquer ato de
“tolice” e nos lembram incessantemente a necessidade vital de consumir,
pois como bem atenta Huxley:
“Sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade.”
Todos esses mecanismos de controle social escondem um autoritarismo
com o qual nos acostumamos e aceitamos, pela indisposição em ser mais
que um pacote de biscoitos e um par de sapatos. Preferimos estar cegos e
condicionados que se opor ao sistema. Estamos, assim, mais que cegos da
razão, estamos, como diz Bauman, em uma cegueira moral.
Somos subvernientes a um sistema que racionaliza as emoções e que
transforma a vida em uma longa linha de produção, de modo que não existe
outro caminho a uma vida prazerosa sem passar por ela. Somos cegos
admirando os caminhos líquidos de um mundo novo.
O admiramos, pois fomos seduzidos pelo encanto e enlace erótico de um
mundo que me permite ser um novo a cada dia, em que não se precisa de
laços e que, portanto, cada um é um fim em si mesmo. Somos servos
voluntários, pois nós mesmos nos fazemos dominar. Entretanto, esquecemos
que esse sistema hegemônico através da sedução que nos domina, mantém o
status quo de opressão e escravidão.
Como diz Bauman: “A vida desejada tende a ser a vida vista na TV”.
Mas, a vida vai além de padrões de comportamento, de cartilhas, senhas e
números. Vai além de escravidão e dominação. Vai além de reproduzir as
verdades da mídia. Vai além de um cartão sem limites. Vai além de
algumas polegadas. Ainda que para enxergar esse além, seja preciso
coragem para sair do cinema e visitar a própria vida.
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